Participantes de comunidades na rede tratam anorexia como um estilo de vida


12/09/2011 09:33
 (Arte Correio Brasiliense)
“Eu colocava na minha cabeça que arroz eram vermes. Você se olha no espelho e vê um ser desfigurado, de 100kg.” Com 1,71 metro, Rebeca* pesava 56kg — o que resultava em um índice de massa corporal (IMC) de 19,2, considerado normal. Incomodada com roupas marcadas e determinada a ter uma barriga “seca”, a estudante, então com 17 anos, resolveu parar de comer. O café da manhã foi a primeira refeição a ser sacrificada. Depois, almoço, lanches e jantar foram substituídos por um pedaço de cenoura diário. “No começo, eu até almoçava quando chegava da escola, mas fui me sentindo culpada”, conta. “Você enjoa, vê a comida na sua frente e sente nojo.”

Rebeca precisou criar estratégias para driblar a fome, os amigos e os parentes. Dormir a tarde inteira limitava o tempo em que ela pensava em comida. Para os amigos, mentia que já havia comido e, com a mãe, simplesmente ignorava o tema. “A gente comia se quisesse lá em casa, ninguém ‘vigiava’”, explica. Durante os sete meses em que esteve doente, Rebeca viu seu manequim diminuir três números e os ponteiros da balança caírem rapidamente: dos 56kg iniciais, a estudante alcançou a marca dos 48. “Cheguei a usar calça tamanho 34, quando estava acostumada com a 40”, conta. Contudo, o corpo não demorou a cobrar o preço pela falta de comida. “Eu não queria sair de casa, estava muito para baixo. Um dia passei mal e minha visão ficou escura. Fiquei com medo”, confessa.

Após o episódio, Rebeca descobriu que estava anêmica e resolveu que era hora de parar. “Fui a uma psicóloga sete vezes, mas não acho que foi isso que me curou. Passou sozinho”, resume. Mesmo com a certeza de que está curada, Rebeca admite, contudo, que tem recaídas de vez em quando. O término do namoro, em julho deste ano, fez com que o asco por comida voltasse — e as refeições ficaram resumidas ao almoço com colegas, em que o prato não pesava mais que 400g. Hoje, com 62kg e 23 anos, ela reconhece que as preocupações não tinham razão de ser. “Lembrando disso, vejo o quanto é idiota, mas, na hora, você não tem consciência. É o poder da mente“, justifica.


Para muitas pessoas, é difícil entender o que se passa na cabeça de alguém disposto a privar-se de comer em troca de ossos salientes e um corpo macérrimo, sem o menor vestígio de gordura. Para entender essa “cultura identitária”, pesquisadores se debruçam nesse universo onde comer e beber é praticamente proibido. Uma busca rápida pela internet é suficiente para revelar uma infinidade de websites e fóruns nos quais pessoas ditas pró-“ana” (apelido dado à anorexia pelos “adeptos”) de todas as idades e de várias partes do mundo trocam dicas, dietas e informações sobre o que acreditam ser um estilo de vida, não uma doença.

Traços comuns
Um desses estudos, concluído em julho deste ano pela Fundação Oswaldo Cruz e pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), analisou comentários em uma comunidade virtual para traçar características psicológicas e comportamentais dos participantes. Com 1.616 membros, quase todos do sexo feminino, a página contava com 34 fóruns de discussão. Seis deles foram usados no trabalho e ajudaram os pesquisadores a dividir em três os objetivos das meninas. O primeiro seria entender o conflito entre encarar a anorexia como um estilo de vida, em que o corpo considerado perfeito só pode ser alcançado com dedicação e disciplina, ou como doença. O segundo são as recompensas que um corpo esbelto proporcionaria: felicidade e realização profissional. O terceiro e último diz respeito à sensação de pertencer a um grupo onde é possível expressar-se anonimamente, ou seja, sem medo de represálias ou críticas.

O corpo magro, para elas, é sinônimo de status, riqueza e beleza. Ser invejada por outras meninas, desejada pelos homens e até mesmo conseguir ascender socialmente graças ao corpo sem gordura são metas prioritárias, e nenhum sacrifício é grande demais nessa procura pela “perfeição”. Do ponto de vista médico, porém, muitas vezes não há motivos que justifiquem a obsessão com o peso: após o cálculo do IMC das garotas, os pesquisadores descobriram que 60% delas encontravam-se com o peso normal, 20% com sobrepeso e 20% com baixo peso. O objetivo, entretanto, não é apenas manter o IMC abaixo da média. No trabalho, verificou-se que elas “desejam ter um corpo magro, sem gordura, especialmente, nas partes consideradas mais volumosas, como quadril, coxas, braços e barriga”.

Troca de experiências
Além de dicas de emagrecimento rápido (e nada saudável), meninas com anorexia usam espaços virtuais, como blogs e fóruns, para trocar experiências e desabafar.


Veja alguns trechos de depoimentos dessas garotas:
“Eu tô com medo... Acho que a Ana vai voltar... E eu preciso tanto Dela neste momento... Estou em tratamento há tempos. Eu realmente A estava superando, porque na maior parte do tempo consigo saber os porquês das situações e também da maioria das emoções e sensações... Mas eu ainda não me permito falhar, errar, sei lá... mesmo não tendo certeza se eu realmente cometi a tal falha... E eu tô com medo... talvez Dela, da Ana; talvez da falta Dela, que neste momento, conscientemente sei que só Ela está do meu lado... Ela é o ódio de mim mesma e, principalmente, o castigo que eu mereço... Ela dói, mas eu quero... pode ser que seja só hoje... Pode ser que não.”
Anorexia: diário da minha outra personalidade

– anorexica.zip.net

“Depois de mto relutar estou levando o tratamento mais a sério.... NÃO...NÃO DEIXEI DE SER ANA! Terapia 3x por semana, acompanhamento de nutricionista, psicólogo, td isso tem me ajudado..... hoje me considero uma ana mais saudável. Evito loucuras como tomar água morna com detergente,me entupir de laxantes....mais o chá de sene e o chá verde continuam meus companheiros fieis...... Faz 40 dias q não me corto....isso é um grande passo pra mim! Todo mundo tá em cima então NF é quase impossível.....continuo com meus LFs é clarooooo! O melhor de tudo é q não engordei, mas tbm não saio dos 46 kgs! afffff....”
I love hip bones
– anfetaminagirl.blogspot.com

“Um ‘A’ foi talhado no meu braço. Poderia ser o ‘A’ do meu nome, o ‘A’ de autocontrole, o ‘A’ de amor-próprio, mas não. É o ‘A’ dela. Eu sei que é. Eu sinto-o arder até agora como se a gilete tivesse sido recém-passada. No meu sofrimento, na minha loucura eu voltei a tomar diurético e a talhar meu braço. E por ironia cortei meu dedo sem querer. Quando eu escrevia em meu caderno na faculdade ele começou a sangrar escuro. Eu o olhei com indiferença e continuei a escrever, sem pestanejar. Ontem no parque de diversões eu passei mal. Comi um pouco de algodão doce e tive que correr escondida pra algum lugar porque o diurético estava fazendo efeito e eu estava vomitando a bile. Minha pressão baixou absurdamente e eu quase caio ali mesmo. Ao chegar em casa eu não sei se adormeci ou desmaiei no meu quarto.”
Ossos no país das maravilhas

– ossosdeanjo.blogspot.com


* Nome fictício a pedido da personagem.



Gláucia Chaves - aa
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