A crise de cada dia


Até que ponto o dinheiro e as preocupações cotidianas guiam a sua vida? Tais Machado levanta a questão.




Desde que nascemos já vivenciamos crises, afinal, o próprio nascimento já é uma. Com o passar do tempo, elas aumentam, em volume e profundidade. Ou, conforme a interpretação, trata-se sempre da repetição da primeira crise (da saída do ventre materno e o eterno desejo de voltar para lá). 


Falar de crises é falar de nosso cotidiano, tanto pessoal quanto social. Consideremos a recente crise econômica que, num mundo globalizado, repercutiu e agravou boa parte da situação dos países. O Brasil foi um dos menos afetados, mas, ainda assim, sofreu.

A jornalista e pesquisadora mexicana, radicada em Londres, Citlali Rovirosa-Madrazo, disse: "A crise deve abrir uma possibilidade de dar um passo atrás e trazer à baila novas perguntas, de rever e desafiar todos os nossos quadros teóricos, e explorar algumas de nossas cavernas históricas e mentais". Em sendo assim, aproveitamos a oportunidade!

O sistema capitalista em que vivemos traz quais implicações? O que mudou depois dessa crise?

É interessante ver que muitas pessoas têm repensado o estilo de vida e mudado hábitos de consumo. Algumas forçosamente, outras de forma espontânea. Mas há um movimento que vem ganhando força e que tem como lema algo como: "viva melhor com menos".

Muitos têm descoberto que é falsa a ideia de que, para ser feliz, você precisa ter mais, comprar mais, consumir mais. Eles têm revisto o que realmente é felicidade e o que os torna realizados. Pensar como se gasta o dinheiro é fundamental. E quem estuda a Bíblia, sobretudo o ensino de Jesus, sabe que essa é uma lição de casa, um exercício permanente.

O frenesi da nova aquisição passa tão rápido, e a satisfação hedonista é uma armadilha, afinal, nunca satisfaz mais do que por poucos instantes. Alguns que já chegaram ao nível de praticamente poder comprar qualquer coisa a qualquer momento confessam que a felicidade não está nisso. Há um vazio que não se preenche com coisas.
O cineasta Roko Belic há quatro anos viaja o mundo fazendo um documentário chamado Happy (Feliz). E ele próprio, em entrevista ao jornal americano The New York Times, contou que tem mudado após ver e ouvir tantas pessoas e suas histórias, e que "as coisas que somos treinados a pensar que nos deixam felizes - como ter um carro novo a cada dois anos e comprar as últimas modas - não nos deixam felizes".

Se libertar da compulsão de comprar, aprender a dar suas coisas, viver com mais simplicidade são desafios e resultados dessa crise.

Para os cristãos, sobretudo, espero que tal reflexão seja aprofundada. Gosto de ler Paulo Brabo dizendo que "a ganância é mentirosa porque promete embalar e entregar, a seu preço, aquilo que Deus dá de graça no pacote básico da vida". Aliás, na maior parte do tempo, pouco aproveitamos não só o que temos, mas, mais ainda, tudo o que Deus nos dá. Por exemplo, nossa contemplação se limita a vitrines ou se delicia na natureza?

De volta ao Brabo, ele acrescenta: "É preciso usar o dinheiro sem ser usado por ele; extrair gozo do material sem ser desfigurado por ele. É preciso ser generoso como Deus, pobre como Jesus". Sim, converter-se a Jesus é ser provocado o tempo todo, ser discípulo dele implica em rever qual a razão de nosso esforço, como lidamos com o dinheiro, pelo que somos dominados, quais são nossas fraquezas, como participamos do sofrimento do outro, quão dispostos estamos a abrir mão do que temos para descobrir melhor quem somos, e por aí vai.

Lembro-me do apontamento amargo que faz o autor de Eclesiastes: "Que proveito tem um homem de todo o esforço e de toda a ansiedade com que trabalha debaixo do sol? Durante toda a sua vida, seu trabalho é pura dor e tristeza; mesmo à noite a sua mente não descansa. Isso também é absurdo" (Ec 2.22-23). Descobrir-se engolido por um absurdo desse e assumir incoerências pessoais são frutos da graça de Deus. Uma lucidez que pode trazer maior leveza.

Harold Kushner, rabino do Templo Israel em Natick, comenta: "A religião deve significar mais para nós do que um compromisso com o comportamento ético, do que o amar ao nosso próximo. Tem que ensinar os nossos olhos a ver o mundo" e mais, diz que "nos tornamos as pessoas que somos, não em razão do que acontece, mas pela maneira como aprendemos a ver estes acontecimentos". Então, cabe-nos pensar com maior cuidado a respeito dos acontecimentos de nosso contexto, sobretudo, refletir sobre os ensinamentos de Jesus.

Ao falar sobre as preocupações da vida, Jesus convida seus ouvintes e seguidores a observar a beleza e simplicidade dos lírios do campo. Geralmente, precisamos mesmo ser chamados à atenção, pois, a tendência geral é negligenciar as pequenas e especiais belezas que nos cercam. Jesus diz: "vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu lhes digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles" (Mt 6.28-29).

Jesus foi a um ponto importantíssimo, como sempre. Ele nos faz lembrar que Salomão foi realmente esplendoroso por tudo o que conseguiu. Ele poderia esbanjar suas posses. Ele tinha poder e riquezas para adquirir tudo que havia de melhor à época. Talvez até com um tom irônico, Jesus nos provoca a refletir de que isso tudo vale diante da beleza singela de um lírio do campo. Então, afirma, "Salomão ficou para trás", foi vencido pela beleza e simplicidade de uma flor comum do campo.

Nossos olhos parecem ser viciados no brilho, nosso olhar anda adoecido, capaz de ser continuamente estimulado pelo "mais é melhor", e assim, corremos atrás de mais conquistas ilusórias. A sensação de alguns é que falta muito e, portanto, vivem ansiosos, estressados por não terem o suficiente; outros acham que falta pouco, e por isso mesmo querem aumentar a velocidade para "chegar lá". Um "lá" que não leva a lugar nenhum. Até quando?

Há uma crise que pode ser muito boa se bem aproveitada. Andar com Jesus, trazendo no coração suas palavras, é uma oportunidade de viver boas e intensas crises que levam à vida abundante. Perceba, a vida é abundante, não as coisas.

Viver o que Jesus ensinou é também descobrir uma vida "secreta", escondida em detalhes, belos e singelos. É ser sensível ao que mais importa. É vivenciar uma leveza nova, uma paz que não se encontra para poder comprar.

O senhorio de Cristo é, em certo sentido, uma crise permanente em nós, mas obedecê-lo é experimentar uma vida muito além, maior, com uma densidade e alegria que só sabe quem a vive. Vale a pena, vale o sabor, vale tudo, nele.


Tais Machado
0 Responses