Quando pequeno, eu sonhava ser tratado por um veterinário.
Na minha visão infantil, esse era um super médico: um médico muito especial que conseguia descobrir e curar as doenças dos animais; enfermos que não podiam dizer uma só palavra; muitas vezes, o máximo que conseguiam fazer era dar um ganido quando apalpados no local machucado. Imagine! Um médico que descobre sozinho o que há de errado com o paciente! Ah, que sonho!
Eu tinha consciência da dificuldade de dizer o que havia de errado comigo. Mesmo para meus pais. Sabia apenas que havia coisas doentes e doendo. Mas não se tratavam de ferimentos externos, como um joelho ralado, ou um braço quebrado. Esses casos eram fáceis. Mas eram dores para mim indescritíveis. Como explicá-las? Com que palavras? Como descrever angústias, ansiedades e medos com o vocabulário de um menino de oito anos? Melhor era subir numa árvore bem alta e ficar lá. Ou nadar para minha Ilha Rasa e passar boa parte do dia “longe dos problemas”, em meio às gaivotas. Fuga, claro.

Com o tempo, percebi que aquelas dores iam comigo para a ilha. Mas a felicidade da solidão e do calor do sol ajudavam, como hoje ajuda um banho quente em meio a problemas no trabalho. Acho que Freud explica.
O meu sonho era que um dia eu seria apresentado a um adulto bondoso, vestido de branco e com um estetoscópio especial. Com olhar profundo, ele se colocaria de joelhos e, com toda a calma, me olharia bondosamente nos olhos. Sem necessidade de palavras, me examinaria o corpo, como os veterinários examinam os animais. Talvez, então, esse veterinário entrasse na minha alma (uma palavra que aprendi mais tarde) e seu estetoscópio gentilmente revelaria meus segredos.
Ele me ajudaria a compreender meus próprios sentimentos. Só o compreender já seria bom. Mas se ele pudesse explicá-los para mim, numa linguagem acessível… Para isso, talvez começássemos uma longa e profunda conversa. Ele me ensinaria as palavras certas para nomear e descrever meus problemas. Elas me permitiriam “olhar” para eles e falar deles para meus pais e pessoas de confiança. Eu iniciaria um bom período de convalescença.
De repente, o doutor me daria algumas receitas que abrandariam meus desconfortos, sanariam minhas culpas, meus medos, minhas angústias infantis. Sim, ele me prescreveria remédios para o coração (ou alma).
Teria sido tão bom se tivesse sido alvo de um lava-pés infantil, executado por um missionário com chamado, unção e poder de Deus para exercer a delicada missão emocional com a qual eu sonhava, mesmo sem saber, ao pensar no veterinário de meninos. Eu não teria esperado cinquenta anos para conseguir (mal) discernir minhas próprias faltas, dores e necessidades; invariavelmente traduzidas por culpa.
Hoje eu contemplo a encarnação do Verbo e vejo ali a origem dessa ordem sacerdotal “veterinária”. Descubro que Deus, em Cristo, se ajoelhou e nos olhou bondosamente nos olhos. E nomeou nossos pecados e dores; e iluminou nossos corações; e nos trouxe esperança. E nos prescreveu a receita do arrependimento e do perdão.
Sim, mesmo já adultos, continuamos em grande dificuldade. Ainda não sabemos discernir muito bem nossos males; ainda vivemos na obscuridade dos nossos delitos e pecados; ainda somos varridos por ventos de desorientação, provenientes de acidentes da vida, acontecimentos fortuitos, desencontros, separações, perdas, descaminhos. Ainda precisamos dele. Mais do que nunca, precisamos do veterinário celestial, que, caminhando conosco, faça a anamnese de nossas dores e nos prescreva um tratamento seguro. Aquela receita de sangue que nos curará definitivamente. Porque nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. Luz que resplandece nas trevas (Jo 1:4, 5).
Mais que isso, ao nos trazer cura divina, deixou-nos o modelo para esse ministério que reconcilia os cacos da alma e pacifica os corações internamente conflagrados. Um ministério que nasce do (e no) amor de Deus; que vê e se compadece; que para e, dadivosamente, despende o tempo necessário para compreender, junto com o “paciente”, o que, até então, só se expressava por silêncios e solidão (Lc 10:33-35).
Ao restabelecer o diálogo vital, esse ministério lança luz sobre as almas em trevas. Aleluia.
“E nos deu o ministério da reconciliação” — entre as crianças e também entre aqueles que se fizerem como elas.
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Este texto é uma versão levemente ampliada do texto publicado no Ponto Final da Ultimato 327.